Por Renato S. Maluf [1]
Era previsível que a comida, tanto sua disponibilidade como o acesso a ela, viesse a ocupar o centro das preocupações e urgências no contexto de pandemia pelo qual estamos passando, ao lado e como complemento indispensável dos cuidados com a saúde das pessoas infectadas ou não pelo vírus mais recente. A preocupação com ter o que comer para não passar fome, e que haja meios adequados para obter os alimentos sem risco de se contaminar, passou a estar na preocupação diária mesmo daqueles para quem comprar e comer não era mais do que rotina obrigatória sem maiores reflexões a respeito. Sem constituir uma novidade trazida pela pandemia, a permanente busca diária por obter essa condição essencial para viver ficou ainda mais difícil para os milhões de miseráveis, desempregados, moradores das periferias, população em situação de rua e outros vulnerabilizados das cidades e dos campos no Brasil.
O chamado isolamento horizontal, medida acertada, acarretou a paralisação de muitas atividades e limitou a circulação da população, porém, por horizontal não se entenda igualdade de condições no enfrentamento das circunstancias atuais em uma sociedade profundamente desigual como a brasileira. As desigualdades sociais aparecem nas questões que estão na ordem do dia, a saber, os riscos de desabastecimento, elevação dos preços, funcionamento precário dos equipamentos de varejo e serviços de alimentação, dependência do transporte de alimentos em longas distâncias e comprometimento mesmo que parcial da própria atividade produtiva industrial e agrícola. Igualmente grave, esse quadro amplia a parcela já significativa da população sem meios para adquirir alimentos ou ter acesso a um prato diário de comida. Só ingênuos ou pessoas de má fé endossam as promessas mentirosas e repulsivas de assegurar emprego e evitar a fome em troca do abandono das medidas duras frente à pandemia ou das indefectíveis “reformas”, promessas vindas justamente dos que têm patrocinado o aprofundamento da recessão econômica e a perda de direitos no Brasil.
Como em outras áreas, as questões de abastecimento alimentar devem ser abordadas combinando ações imediatas frente às emergências com a busca de objetivos permanentes que vão além do contexto de pandemia. Necessitamos do debate público de possibilidades para o país em todas as áreas, enquanto exigimos do Legislativo e Judiciário que dêem conta do descalabro representado pela Presidência de República e seus acólitos. Assim, é preciso enfrentar, simultaneamente e em várias escalas de ação, a subnutrição e a fome junto com o acesso a uma alimentação adequada e saudável para todos/as, ao mesmo tempo em que são promovidas formas de produção, processamento e distribuição dos alimentos socialmente equitativas, ambientalmente sustentáveis e promotoras de diversidade cultural e ecológica.
É disso que se trata quando falamos em abastecimento alimentar, erroneamente limitado à mera disponibilidade de bens a preços acessíveis. Tema obrigatório na agenda pública, o abastecimento engloba um conjunto diverso e complexo de atividades mediando o acesso aos alimentos e sua produção, atividades nas quais estão envolvidos atores sociais com perspectivas muitas vezes conflitantes, entre agentes econômicos privados, organismos de Estado, organizações de consumidores e de produtores familiares. Âmbito em que se expressa de forma mais evidente a política dos alimentos, propostas como as aqui discutidas se inserem na “disputa pelo controle social sobre o abastecimento” (Goodman et al, 2012)[2]. O ponto de partida é o elenco de proposições contidas em documento recém lançado por grande número de entidades e movimentos sociais intitulado “Garantir o direito à alimentação e combater a fome em tempos de coronavírus: a vida e a dignidade humana em primeiro lugar!” (disponível em www.fbssan.org.br).
A fome oculta (subnutrição), como a chamava Josué de Castro, corrói as vidas de parcela expressiva da população brasileira, mais grave, a fome aguda, aquela que mata pela falta absoluta, pode também ter aumentado com o crescimento do desemprego (13,5 milhões ainda em 2018), a precarização do trabalho (41,1% da força de trabalho na informalidade) e o comprometimento de instrumentos de proteção social. Não sabemos se estamos de regresso à vergonhosa condição de integrar o Mapa da Fome da FAO, do qual saímos em 2014, pois vem sendo postergada a divulgação de pesquisas oficiais recentes a respeito. De todo modo, disponibilidade de renda monetária, acesso físico aos alimentos e regulação de preços e qualidade constituem um primeiro e urgente conjunto articulado de ações. Já se disse que a fome mata e não pode esperar. Basta observar quem ainda perambula pelas ruas semi-desertas dos bairros onde antes podiam contar com atitudes que atenuam situações de miséria e fome (pequenos donativos, sobras de restaurantes e padarias, oferta de “quentinhas”, etc.), ou atentar para as favelas e bairros periféricos que só serão enxergados em episódios de revolta.
É possível e urgente acionar o importante arsenal de instrumentos de política pública criados no país nos últimos anos e em processo de desmonte desde 2016, intensificado a partir de 2019. O mais premente é a ampliação imediata da transferência direta de renda aos mais necessitados (Bolsa Família, Benefício de Prestação Continuada, Aposentadoria e a recém aprovada e tímida Renda Básica de Emergência), combinada com a retomada da valorização permanente do salário-mínimo ampliado em sua abrangência. Há um Cadastro Único para programas sociais que facilita em muito a identificação dos necessitados, complementado pela chamada busca ativa. No entanto, se não faltam instrumentos, aqui reside um dos pontos de conflito aberto com a bíblia neoliberal hoje em mãos de Paulo Guedes e equipe, um conflito mais ideológico que de recursos como o revela a mera comparação da agilidade e dos montantes astronômicos com que são “irrigados” os capitais, e os sempre “problemáticos” mecanismos de transferência de uma renda mínima aos mais pobres. Devem temer que as fissuras provocadas pela pandemia na narrativa dominante não possam ser revertidas quando ela passar e termine por legitimar, uma vez mais, o papel do Estado e o uso de recursos públicos na proteção social da população.
Junto com a renda monetária, os alimentos para uma alimentação adequada e saudável devem chegar onde moram os que deles necessitam por meio de equipamentos de varejo e serviços de alimentação lá instalados ou por concessão pública (varejões móveis e feiras). Qualificar o pequeno varejo tradicional pode ser a oportunidade para iniciar a reversão do predomínio nesses estabelecimentos de produtos que refletem a pauta da indústria e das redes de supermercados, notadamente os alimentos ultraprocessados. As ações comunitárias fruto da crescente solidariedade entre iguais que já se verifica em favelas e bairros periféricos podem ser estimuladas a incorporar o acesso aos alimentos em outras direções para além da necessária distribuição emergencial de cestas de alimentos. Os alimentos e a alimentação são fonte de vida (saúde) ao mesmo tempo em que geram emprego e ocupação.
Em todas as regiões do Brasil já há um universo significativo e variado de produção, processamento e comercialização de alimentos oriundos da agricultura de base familiar que circulam através de circuitos curtos, feiras, oferecimento de cestas entregues em domicílio, etc. Consumidores com melhor condição social têm se organizado para estabelecer conexões com agricultores familiares e suas associações, em especial com aqueles que se dedicam à produção orgânica e agroecológica. Muitas cidades de porte médio e bairros das grandes cidades contam com feiras regulares às quais têm acesso direto os agricultores. Faltam a essas iniciativas visibilidade e facilidades de logística que poderiam ser objeto de apoio por parte das administrações municipais, inclusive com o intuito de ampliar seu raio de ação na direção da população periférica, em articulação com as ações mencionadas no parágrafo anterior. Tais circuitos e redes constituem um dos caminhos mais promissores porque favorece o acesso a produtos frescos e pouco processados, com menor requisito de transporte e mais próximos das culturas alimentares e da biodiversidade.
Referência específica deve ser feita ao Programa Nacional de Alimentação Escolar nos moldes em que vem operando desde 2009. Sabe-se que a chamada merenda escolar é a principal, quando não a única refeição diária de milhões de crianças pobres no país. Estamos falando do oferecimento diário e gratuito de refeições a cerca de 4O milhões de escolares em todos os municípios do país, uma conquista sem dúvida. O necessário fechamento das escolas não pode interromper esse serviço essencial e nem comprometer o mecanismo de compra prioritária e direta da agricultura familiar local ou regional, com as devidas adaptações. O que se propõe é a entrega periódica de cestas de alimentos para as famílias dos escolares adotando estratégias que evitem aglomeração, com alimentos prioritariamente produzidos pela agricultura familiar, assegurando o escoamento da produção e a renda de agricultoras(es) fornecedoras do PNAE e evitando o desperdício de alimentos. O Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) deve manter, neste período de quarentena, a transferência de recursos aos estados e municípios, autorizando sua destinação para a compra de cestas de alimentos e/ou transferência direta de renda às famílias dos escolares. Com projeto de lei já aprovado pelo Congresso Nacional, mas pendente de sanção presidencial e regulamentação, governos estaduais e municipais deram início à distribuição de cestas para famílias de escolares, porém, há o temor de que a insuficiência de recursos permita atender menos da metade do público regular.
Igualmente imediata deve ser a retomada do Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar, outra importante e inovadora conquista no âmbito das políticas públicas que chegou a operar R$ 850 milhões anuais, atingindo 185 mil agricultores familiares e 24 mil entidades assistenciais em todo o país; em 2019, a soma de todas as modalidades de compra do PAA não chegou a R$ 100 milhões. Entre as modalidades operadas pela Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB), bem como por estados e municípios, propõe-se privilegiar a Compra com Doação de Alimentos, operacionalizada por meio das organizações sociais, associada à distribuição de cestas de alimentos às famílias carentes e em situação de vulnerabilidade.
Não se trata de ignorar, por evidente, o lugar predominante ocupado pelo monocultivo agrícola e a criação animal de grande escala e farta utilização de venenos, pelas grandes corporações agroindustriais e indústria alimentar de vem os alimentos ultraprocessados, e pelas redes de supermercado com enorme poder de influenciar hábitos alimentares, todos apoiados em interna propaganda pelos meios de comunicação. Relembre-se a intensa oposição às tentativas de regulamentação da publicidade de alimentos no Brasil. Estes são os setores que recebem atenção prioritária do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), enquanto que desde 2016 já não contamos com um ministério dedicado à agricultura familiar e à reforma agrária.
Cabem ressalvas de várias ordens à compreensão corrente sobre o conjunto formado pelo agronegócio, grandes agroindústrias e indústria alimentar tido como muito produtivo e eficiente, capaz de produzir volumes enormes para exportação ao mesmo tempo em que mantém cheias as prateleiras dos supermercados. As graves repercussões sócio-ambientais do modelo agropecuário, os conflitos sempre freqüentes no campo, a despeito da prevalência de dietas monótonas e danosas à saúde humana e o crescimento do sobrepeso e obesidade sobressaem entre as ressalvas mais evidentes. A chamada eficiência e competitividade privada não se sustenta sem o farto apoio de recursos públicos, tais como crédito barato nem sempre pago, benefícios fiscais, amplo aparato de pesquisa igualmente pública (EMBRAPA e congêneres estaduais) e obras de infraestrutura.
Ao contrário da narrativa de tranquilidade difundida pelo Ministério da Agricultura, o balanço produzido pela CONAB e analistas do setor agropecuário apontam para um quadro, no mínimo, de incertezas em face dos baixos estoques públicos. O real desvalorizado tem favorecido as exportações e a concentração da produção nacional na soja, com estagnação da produção de arroz e feijão. Acrescentem-se a elevação dos preços do arroz em casca em 2019 e a não recomposição de estoques públicos de arroz, feijão e milho. O quadro de incertezas se estende também às carnes, de modo que o mercado interno de alimentos deverá se manter com preços elevados. Seria preciso uma ação integrada, coordenando os setores envolvidos na esfera federal e, em diálogo com estados e municípios responsáveis por parte significativa das ações de abastecimento alimentar, com especial atenção às políticas direcionadas à agricultura familiar.
Propõe-se instituir, imediatamente, o monitoramento nacional e regionalizado dos fluxos e preços dos alimentos integrantes da cesta básica por intermédio do sistema CONAB/CEASAS, visando controlar a especulação em preços e atuar em face de episódios de desabastecimento, contando com o apoio do DIEESE para isto. Há que promover a imediata recomposição dos preços mínimos e assegurar recursos para que a Conab possa adquirir, em especial arroz, feijão, milho, leite e farinha de mandioca. Já se destacou mais acima a importância de fortalecer circuitos curtos e de proximidade de comercialização de alimentos adequados e saudáveis, articulados com a promoção de equipamentos de varejo (pequeno comércio, feiras, etc.) que garantam o acesso a esses alimentos pelas famílias mais vulneráveis e moradores nas periferias. As iniciativas de agricultores/as e grupos de consumidores visando a compra direta da produção da agricultura familiar e das redes de comercialização agroecológicas permite o acesso a alimentos saudáveis, mitigando os riscos de contágio.
Esforço conjunto com as administrações municipais deve ser dirigido para a gestão de equipamentos públicos de abastecimento (varejões, sacolões, mercados municipais, feiras) que atenda os esforços na direção aqui apontada, para além de suas finalidades mercantis específicas, e com os devidos cuidados para reduzir o risco de contaminação. Esse é o caso das feiras livres, em especial as feiras orgânicas e agroecológicas, cujo funcionamento deve estar sob coordenação das equipes de saúde de forma a minimizar o risco de contágio (orientando feirantes e população, ajustando a disposição das barracas, fluxo de pessoas, horário de funcionamento, disponibilizando material de higiene, entre outros).
Igualmente importante é assegurar a proteção sanitária e social das/os trabalhadoras/es em todas as atividades do sistema alimentar de quem dependemos para assegurar o abastecimento de alimentos, instando empregadores na agricultura, indústria e comércio a adotarem medidas concretas nessa direção, e orientando trabalhadoras/es formais e informais sobre procedimentos requeridos com fornecimento de material de higiene. As administrações municipais têm papel preponderante na continuidade, adequação e ampliação dos chamados equipamentos de segurança alimentar e nutricional, ainda mais essenciais em situações de emergência como agora. Em 2018, existiam no Brasil 152 restaurantes populares, 107 bancos de alimentos, 139 cozinhas comunitárias e 642 unidades de distribuição da agricultura familiar.
A agricultura de base familiar e diversificada carece de políticas de emergência para continuar cumprindo com seu papel de garantir “comida de verdade”. Entre elas, podem ser citadas: prorrogar o vencimento do custeio da agricultura familiar até 31/12/2020, e do investimento para seis meses após o vencimento no âmbito do PRONAF; suspender a inscrição dos débitos oriundos dos financiamentos da agricultura familiar na Dívida Ativa da União até 31 de dezembro de 2020; criar linha de crédito emergencial para agricultores(as) familiares, com taxa de juros subsidiada; liberar pagamento do Garantia-Safra a todos os(as) agricultores(as) familiares que aderiram ao programa dos municípios em estado de emergência; liberar recursos que garantam o direito à água no semiárido através do Programa Um Milhão de Cisternas (água para consumo humano) e Uma Terra duas Águas ( água para produção); assegurar equipes de Atenção Básica de Saúde nos assentamentos da reforma agrária, comunidades rurais e de povos e comunidades tradicionais, para orientar como prevenir a contaminação por coronavírus.
Chegou-se a formular uma proposta de política nacional de abastecimento alimentar para o Brasil, orientada pela promoção da soberania e segurança alimentar e nutricional e do direito humano à alimentação adequada e saudável. O Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA) liderou esse debate com intensa participação social ao longo de sua existência, desde 2003, antes de passar por crescente esvaziamento a partir de 2016 que levou ao seu fechamento já nos primeiros atos da Presidência da República instalada em 2019. A Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional (CAISAN), antes de ser igualmente desfeita no ano de 2019, chegou a gerir um orçamento de R$ 2.5 bilhões em 2014, tendo articulado no interior do Governo Federal um bom número de ações relacionadas com o abastecimento alimentar, a maioria delas envolvendo participação dos governos estaduais e municipais no âmbito do desfeito Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN). Não obstante, o Brasil continua com significativo acúmulo em termos de mobilização social e geração de conhecimento no campo da SSAN e do DHA, mobilização capaz de produzir o elenco de propostas recém lançado, além de estar em pleno processo preparatório de uma Conferência Nacional Popular, Autônoma e Democrática em SSAN, em reação ao fechamento dos espaços de participação social pelo Governo Federal.
O protagonismo dos governos estaduais e municipais na presente pandemia tem aberto espaço para a materialização de algumas iniciativas como as aqui sugeridas. Entidades da sociedade civil têm pleiteado se engajado na constituição Comitês de Emergência em Segurança Alimentar e Nutricional, no âmbito dos estados e municípios. No entanto, é impossível pensar na plena implementação de ações e políticas públicas na direção do que aqui se expôs na ausência de um marco institucional como o antes existente, participativo, intersetorial e sistêmico. Daí ser obrigatório afirmar esse requisito em vista de qualquer esforço de reconstrução do Estado brasileiro em bases democráticas, com respeito a direitos e efetiva participação social na formulação, implementação e monitoramento de políticas públicas.
Como fartamente revelado nos estudos a respeito, as distintas concepções, conflitos e contradições capturados pela ótica na política dos alimentos e, claro, as escolhas daí resultantes têm uma relação de mão dupla com a política em geral. Um ambiente democrático e um Estado permeável à participação da sociedade depende o debate aberto das opções que levam a uma alimentação adequada e saudável para todas/os, ao mesmo tempo em que é fácil notar como os poderosos interesses que hegemonizam o agroalimentar restringem essa possibilidade.
[1] Professor do Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (CPDA), Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.
[2] Goodman, D.; Dupuis, E. M.; Goodman, M. K. Alternative food networks: knowledge, place and politics. London (UK), Routledge, 2012.
Fonte: GGN