Mutações aleatórias — como são todas as mutações — levaram o novo coronavírus, o Sars-CoV-2, a adquirir uma grande afinidade com uma proteína, a ACE2, presente nas células dos sistemas cardiovascular e respiratório humanos, transformando-a em porta de entrada para a infecção. A tarefa é facilitada pelo fato de que todas as pessoas têm os mesmos aminoácidos em 30 pontos chaves do contato entre o vírus e a ACE2, o que torna todas as populações humanas do planeta suscetíveis ao micro-organismo, facilitando a propagação da pandemia de covid-19.

A descoberta é de um grupo de pesquisadores, liderados pela geneticista Maria Cátira Bortolini, coordenadora do Laboratório de Evolução Humana e Molecular, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). O trabalho, que foi revisado por outros pesquisadores, será publicado em breve na revista científica de circulação internacional Genetics and Molecular Biology, publicação da Sociedade Brasileira de Genética.

O estudo foi feito por meio de encontros virtuais, entre Maria Cátira, estudantes do Programa de Pós-Graduação em Genética e Biologia Molecular da UFRGS, do qual ela é orientadora, e ex-orientados, que hoje estão nas universidade de São Paulo (USP) e de Lausanne, na Suíça. Eles usaram informações sobre o novo coronavírus e a covid-19 de artigos científicos que vêm sendo publicados desde janeiro deste ano e bancos públicos de dados genéticos.

Ele verificaram que o Sars-CoV-2 cooptou a proteína ACE2 — que está relacionada ao metabolismo do sistema cardiovascular, atuando na regulação da pressão sanguínea — para ingressar na célula do hospedeiro humano. Quando age de forma errada, ela está envolvida em hipertensão, arteriosclerose e infarto do miocárdio. Por isso, as pessoas com problemas cardíacos são do grupo de risco para a covid-19.

Partindo desse conhecimento, Maria Cátira e sua equipe decidiram estudar a variabilidade da ACE2 e do gene que a codifica em 70 espécies de mamíferos placentários, entre os quais cães, gatos, tigres, carneiros, morcegos e pangolins. Também foram analisados os genomas de mais de mil seres humanos.

“Descobrirmos que esta proteína, considerando 30 pontos de contato com o vírus, é invariável em qualquer população humana”, conta. “Isso significa que, potencialmente, somos todos igualmente suscetíveis ao micro-organismo. Portanto, há outros mecanismos para explicar a heterogeneidade da infecção e da doença em humanos, como, por exemplo, o sistema imunológico, cuidados, isolamento social ou tratamento médico.”

O mesmo não ocorre nas outras espécies de mamíferos placentários estudados. Há diferenças importantes na proteína ACE2, que poderiam protegê-las da infecção. “Nosso estudo mostrou que os humanos são perfeitos como hospedeiros para o novo coronavírus”, diz Maria Cátira. “Ele também poderia infectar, talvez com eficiência similar, grandes macacos, como chimpanzés e gorilas, mas não outras espécies, como os animais domésticos (cães e gatos) e outras selvagens.”

De acordo com a pesquisadora, o Sars-CoV-2 provavelmente veio de um coronavírus do morcego e sofreu mutações. “Neste caso, elas levaram ao tropismo (afinidade) com as células humanas que apresentam a ACE2”, explica. “Nesse momento, essa proteína passou a trabalhar para o vírus. Ou seja, além de deixar de funcionar para a célula humana começou a ajudar para o vírus.”

De animais para os seres humanos

A primeira vez em que houve um salto genético desse tipo, ou seja, que um coronavírus oriundo de um animal infectou seres humanos, ocorreu em 2002, com o Sars-Cov-1, causador da Sars (Síndrome Respiratória Aguda Grave, na sigla em inglês). Originado do civeta-de-palmeiras-mascarado (Paguma larvata), um pequeno carnívoro que vive no sudeste asiático, o Sars-CoV-1 atingiu 29 países, infectando mais de 8 mil pessoas, das quais cerca de 800 morreram.

Mais recentemente, em 2012, apareceu o Mers-CoV, oriundo de camelos da Arábia Saudita. Ele causa uma doença chamada de síndrome respiratória do Oriente Médio, que, do seu país de origem, se espalhou pela Europa, África e Estados Unidos. Com alta taxa de mortalidade (de 30 a 40%), ele infectou cerca de 2,5 mil pessoas. Apesar de perigosos, esses dois vírus não chegaram nem perto de causar os danos do Sars-CoV-2. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), até hoje, 02/06, há 6,2 milhões de casos confirmados, com 376 mil mortes.

Maria Cátira Bortolini coordenou o estudo sobre o ‘salto genético’ do coronavírus

Não é de hoje que o homo sapiens tem convivido com epidemias de coronavírus. As três ocorridas nos últimos 20 anos são apenas as mais recentes.

“Esse tipo de vírus infectar humanos é algo comum, que faz parte da história da vida”, diz Maria Cátira. “O que é marcante no novo coronavírus e na pandemia associada a ele é que agora somos uma espécie com tamanho populacional enorme, que vivemos em grandes aglomerados urbanos e com muita facilidade de se locomover de um local para outro, facilitando enormemente a sua propagação.”

Isso começou a ocorrer quando os humanos passaram a ser sedentários, com a domesticação de animais e plantas, que caracterizou a chamada revolução neolítica ou agrícola, ocorrida há 12,5 mil anos. “Até então, homo sapiens vivia em pequenos bandos de caçadores-coletores e um ataque de coronavírus com muita virulência poderia dizimar somente um grupo isolado, de 20 a 30 pessoas, ou com relativas poucas mortes”, explica Maria Cátira.

“Quando trocaram a vida de nômades pela sedentária de agricultores e domesticadores de animais e começaram a se aglomerar em aldeais e, mais tarde, cidades, o que não era tão relevante do ponto de vista epidemiológico se tornou devastador.”

Ela lembra que, hoje, a população humana é de quase 8 bilhões de habitantes, interconectados de uma maneira sem precedentes. Uma pessoa pode ir de um lugar do planeta a qualquer outro em menos de 24 hoje, levando seus vírus e doenças. “Essa é a grande diferença”, diz. “Patógenos [organismos causadores de doenças] sempre existiram na história de qualquer espécie. Com a nossa não é diferente.”

Fonte: BBC Brasil

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