Ao longo de 2020 e 2021, diversos grupos de pesquisa brasileiros divulgaram que tinham desenvolvido protótipos de vacinas para barrar a covid-19 — alguns chegaram até a estipular datas para o início e o término das três etapas de testes clínicos necessárias para comprovar (ou não) a eficácia e a segurança das novas formulações.
Na prática, porém, nenhuma das candidatas cumpriu o cronograma. Entre as sete vacinas anunciadas, o produto que mais avançou foi a ButanVac: o Instituto Butantan, em São Paulo, anunciou recentemente que finalizou a primeira fase dos testes clínicos.
E, mesmo nesse caso, a conclusão da fase 1 acontece cerca de oito meses depois da data estipulada para a conclusão de todas as três etapas exigidas pelas agências regulatórias, como a Anvisa do Brasil.
Numa coletiva de imprensa realizada no dia 26 de março de 2021, Dimas Covas, diretor do Butantan, e João Doria (PSDB), governador de São Paulo, chegaram a dizer que, se os testes corressem bem, a ButanVac poderia ser aplicada ainda em julho de 2021.
Nesse meio tempo, os cientistas encontraram uma série de dificuldades, que vão desde falta de estrutura e insumos para fabricar as primeiras doses até pedidos de ajustes nos protocolos de pesquisa conforme a campanha de vacinação progredia.
A BBC News Brasil entrou em contato com as sete instituições brasileiras que estão por trás das candidatas à vacina anunciadas nos últimos meses. Confira o status de todas as pesquisas e quando são esperados novos resultados.
ButanVac
Com a tecnologia desenvolvida no Hospital Mount Sinai e na Universidade do Texas em Austin, ambos nos Estados Unidos, essa vacina traz um vírus modificado da doença de Newcastle (que afeta aves, mas é inofensiva para seres humanos) com a proteína S do coronavírus.
Esse “S” vem de spike (ou espícula, em português), a estrutura que fica na superfície do vírus e se conecta às nossas células para dar início à infecção.
As doses da ButanVac são produzidas em ovos embrionados de galinha, uma tecnologia que o Instituto Butantan domina e utiliza para fabricar cerca de 80 milhões de unidades da vacina contra a gripe todos os anos.
Além da instituição brasileira, esse produto também é testado em outros dois lugares: no Instituto de Vacinas e Biologia Médica do Vietnã e na Organização Farmacêutica Governamental da Tailândia.
Como mencionado no início da reportagem, as primeiras notícias sobre esse produto foram divulgadas em março de 2021 e havia até uma perspectiva de que ele poderia ficar disponível já no ano passado.
Fato é que a fase 1 dos testes clínicos, em que os cientistas avaliam a dosagem adequada e a segurança da formulação, foi finalizada agora em fevereiro de 2022.
Num texto publicado no site oficial, o Butantan explica que precisou fazer ajustes nessa primeira fase das pesquisas, já que a campanha de vacinação estava progredindo bem entre a população brasileira no segundo semestre de 2021.
“Como naquela época o avanço estava muito rápido e o estudo pedia que os voluntários nunca tivessem tomado vacina e não tivessem covid, o número de pessoas disponíveis foi diminuindo”, justificou o médico e consultor do Butantan, Eduardo Motti.
O instituto precisou então “adaptar a ButanVac para outro momento da pandemia: aquele em que toda a população estaria vacinada, mas no qual o vírus continuaria circulando e desenvolvendo variantes”.
Com a mudança nos protocolos, foram recrutados 327 voluntários, que receberam a ButanVac ou a CoronaVac durante o segundo semestre de 2021. A meta era comparar como cada uma dessas doses agia no corpo.
No site, o Butantan informa que “as equipes envolvidas no ensaio clínico estão terminando de computar os dados da fase 1 para encaminhar à Anvisa. A agência, com as informações em mãos, vai analisar e dizer se tem algum questionamento”.
“Os dados preliminares são bons e ajudaram a definir a dose que será utilizada nas próximas etapas — todas as dosagens utilizadas nessa etapa apresentaram um bom perfil de segurança”, continua o instituto.
Se tudo estiver certo, a ButanVac vai progredir para as fases 2 e 3 dos testes, que medirão a eficácia da vacina em centenas ou milhares de voluntários, que já estarão com o esquema vacinal com duas ou três doses.
A meta é comparar se o imunizante consegue aumentar a proteção contra o coronavírus, inclusive contra as variantes mais recentes, caso da ômicron, e se pode realmente servir como dose de reforço no futuro.
Essas duas etapas ainda precisam passar pela aprovação da Anvisa, e o Butantan afirma que vai encaminhar todos os documentos e protocolos “em breve”. Os responsáveis pela pesquisa pretendem concluir todo esse trabalho até o final de 2022.
RNA-MCTI-Cimatec-HDT
Essa candidata à vacina foi desenvolvida pelo Senai Cimatec, centro universitário localizado em Salvador, na Bahia, em parceria com a empresa americana HDT Bio Corp e apoio do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI).
Ela se vale de uma tecnologia chamada RepRNA, em que uma pequena sequência de códigos genéticos “ensina” as próprias células do nosso corpo a fabricar a proteína S do coronavírus. Na sequência, esse material é reconhecido pelas células de defesa, que desenvolvem uma resposta capaz de proteger contra a infecção de verdade.
O mecanismo é ligeiramente parecido ao que acontece com as vacinas de mRNA, como os produtos de Pfizer/BioNTech e Moderna. A diferença é que o RepRNA tem capacidade de se autorreplicar no organismo, o que, ao menos em tese, poderia garantir uma boa resposta imune com uma menor dosagem.
Outro componente da fórmula é chamado de Lion, uma molécula gordurosa que ajuda a proteger o RepRNA e também serve de “guia” até as células-alvo, onde a produção da proteína S vai acontecer de fato.
O teste clínico de fase 1 da RNA-MCTI-Cimatec-HDT começou em 13 de janeiro e vai incluir 90 voluntários saudáveis de 18 a 55 anos. O objetivo é avaliar a segurança e já medir se o produto gera alguma resposta do sistema imunológico.
Nessa etapa, serão avaliadas alguns esquemas de dosagens e intervalos diferentes entre as aplicações.
Ainda não há previsão de quando os primeiros resultados estarão disponíveis ou a data em que as fases 2 e 3 começarão.
A BBC News Brasil entrou em contato com o MCTI para saber mais detalhes sobre o imunizante, mas não foram enviadas respostas até a publicação desta reportagem.
SpiNTec
A terceira candidata da lista foi criada numa parceria entre o Centro de Tecnologia em Vacinas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a Fundação Ezequiel Dias (Funed) e a Fundação Oswaldo Cruz (FioCruz).
Os testes pré-clínicos, feitos em amostras de células e cobaias, já foram concluídos em 2021. Os pesquisadores aguardam o ok da Anvisa para iniciar os testes clínicos de fase 1, que envolvem seres humanos.
De acordo com a assessoria de imprensa da UFMG, “não há uma previsão de quando os testes serão liberados”.
“Segundo os pesquisadores, é natural nessa etapa de desenvolvimento do imunizante que ocorram diligências com pedidos de mais informações por parte da agência regulatória, que podem, inclusive, demandar esclarecimentos empíricos”, continua a nota.
Em outras palavras, os técnicos da Anvisa analisam as propostas e os protocolos e podem fazer questionamentos, que muitas vezes exigem novos estudos na bancada do laboratório.
Procurada pela BBC News Brasil, a Anvisa esclareceu que, no momento, “não há pedidos de autorização de pesquisa de vacinas no Brasil aguardando avaliação e decisão”.
“Diferentes instituições têm feito a apresentação de dados em forma de submissão contínua. Neste fluxo, a Anvisa recebe os documentos à medida em que o trabalho vai sendo feito, como forma de dar mais agilidade ao futuro processo de análise”, continuam os representantes da agência.
“Porém, os documentos enviados não representam a totalidade de informações necessárias para avaliação e autorização de um estudo clínico. Em alguns casos, por exemplo, ainda não existe um protocolo para ser avaliado”, concluem.
A SpiNTec é uma vacina de subunidade proteica. Ela traz alguns pedacinhos do patógeno — as proteínas S e N — que são reconhecidas pelo sistema imunológico.
O “S” vem da espícula, como explicado mais acima, e o “N” é a inicial de nucleocapsídeo, outra estrutura que forma o coronavírus.
Em tese, a vantagem de incluir duas proteínas diferentes numa única formulação é garantir uma resposta imune mais forte e duradoura — mesmo que o vírus sofra algumas mutações específicas, as células de defesa continuariam reconhecendo o agente invasor.
Por ora, a única vacina contra a covid-19 aprovada no cenário internacional que utiliza a tecnologia da subunidade proteica foi desenvolvida pela farmacêutica Novavax. Ela já está em uso em algumas partes do mundo, como a Austrália.
Mas essa mesma plataforma também já é utilizada em imunizantes para outras doenças, como aqueles que protegem contra hepatite B e HPV.
Versamune
Ao lado da ButanVac, a Versamune está entre as primeiras candidatas à vacina brasileira contra a covid. Sua criação foi anunciada pelo MCTI em março de 2021 e a meta era concluir os testes clínicos ao longo do ano passado.
Desenvolvido numa parceria entre a Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP), a farmacêutica Farmacore e a empresa americana PDS Biotechnology, esse imunizante também se baseia na tecnologia da subunidade proteica.
Os testes clínicos foram, inclusive, aprovados pela Anvisa no primeiro semestre de 2021. Os responsáveis por essa vacina, porém, se viram diante do mesmo desafio da ButanVac: com o avanço da campanha de vacinação, ficou cada vez mais difícil encontrar voluntários não imunizados.
Em junho, a Farmacore pediu à Anvisa uma alteração no protocolo de pesquisa, para que a Versamune fosse avaliada não mais num esquema primário de vacinação, mas, sim, como uma dose de reforço para a CoronaVac ou a AstraZeneca/Oxford. A solicitação segue em aberto, aguardando esclarecimentos e respostas dos pesquisadores.
Nesse meio tempo, o imunizante passou por um segundo revés: a falta de insumos para a fabricação das doses-piloto, as unidades que são aplicadas nos voluntários durante os estudos.
Helena Faccioli, CEO da Farmacore, conta que o desenvolvimento da vacina “sofreu um atraso significativo por causa da falta de materiais necessários para a produção das doses”.
“A pandemia afetou consideravelmente a cadeia de suprimentos do setor de saúde e, consequentemente, afetou o tempo do nosso projeto”, explica.
“O novo lote de insumos está em fase de testes de controle de qualidade para cumprir os requisitos regulatórios”, complementa.
Faccioli acredita que, “tão logo esses resultados estejam disponíveis, o consórcio voltará a trabalhar com a Anvisa para a revisão do protocolo clínico e o planejamento para o início dos testes”.
Vacina de spray nasal do InCor
Outro projeto que esbarra em dificuldades de fabricação dos lotes-piloto é conduzido no Laboratório de Imunologia do Instituto do Coração (InCor), em São Paulo.
O produto desenvolvido nesse local é uma vacina de spray nasal. A grande vantagem do método é barrar a infecção pelo coronavírus em sua origem, na região do nariz e das vias aéreas superiores.
Se os resultados forem bons, o novo imunizante evitaria a transmissão do patógeno — as vacinas disponíveis hoje em dia têm grande capacidade de prevenir os casos mais graves da doença, mas a eficácia delas contra a infecção pelo vírus é um pouco mais baixa.
Segundo o imunologista Jorge Kalil, que lidera as pesquisas no InCor, “os protocolos dos estudos de fase 1 e 2 permanecem em tramitação na Anvisa”.
Em paralelo, a coordenação do projeto procura algum parceiro internacional para o desenvolvimento industrial da vacina.
“No momento, o Brasil não possui um ambiente industrial com boas práticas de fabricação desse imunizante”, avalia o especialista.
2H120 Defense
Esse imunizante, da Universidade Estadual do Ceará (UECE), precisou dar um passo para trás e voltar aos testes pré-clínicos, feitos em laboratório.
Os pesquisadores haviam utilizado camundongos nas investigações preliminares. Os técnicos da Anvisa, porém, pediram que fossem realizadas uma nova rodada de pesquisas básicas utilizando uma outra espécie de roedor: os hamsters.
“Em atendimento a essa solicitação, a UECE está realizando, em parceria com a FioCruz, novos testes pré-clínicos”, informa a assessoria de comunicação da universidade.
Segundo a entidade, até agora os resultados em hamsters são semelhantes ao que foi observado previamente com camundongos.
“Há previsão de uma nova reunião com a FioCruz até o final de fevereiro, para discussão dos resultados e novos encaminhamentos”, complementa a universidade, em nota enviada à BBC News Brasil.
A 2H120 Defense é feita a partir de um outro tipo de coronavírus atenuado, que infecta espécies de aves. A proposta é que o sistema imunológico reconheça o patógeno e gere uma reação capaz de proteger contra o Sars-CoV-2, o causador da covid-19.
S-UFRJVac
As últimas notícias sobre a candidata à vacina desenvolvida pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) são de agosto de 2021.
À época, a expectativa era a de que os testes clínicos de fase 1 fossem iniciados em novembro do ano passado.
De acordo com as informações disponíveis no site da Anvisa, o protocolo de pesquisa clínica, necessário para a aprovação do estudo, ainda não foi submetido para análise.
A BBC News Brasil entrou em contato com a assessoria de imprensa do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia da UFRJ, local onde o produto está sendo desenvolvido, mas não recebemos resposta até a publicação desta reportagem.
A S-UFRJVac também se baseia na tecnologia da subunidade proteica.
Numa publicação no site oficial, a universidade diz já ter “os parceiros que devem produzir os lotes da vacina que serão usados nos estudos clínicos”.
Vacina UFPR
A última candidata à vacina brasileira contra a covid-19 da lista é avaliada na Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Ela foi construída a partir de um polímero que é biocompatível e biodegradável. Ou seja: não causa rejeição no nosso corpo e é eliminado depois de algum tempo.
Na superfície dessa estrutura, os cientistas inseriram a tal proteína S do coronavírus. É justamente esse material que gera uma resposta do sistema imunológico.
Segundo o site da universidade, a pesquisa encontra-se agora na fase pré-clínica, com testes em camundongos. A ideia é conferir se a formulação neutraliza o vírus, protege os animais contra a doença e não provoca efeitos colaterais.
“No momento, a equipe verifica se a adição de outro adjuvante ao polímero (no caso, alumina) poderá estimular ainda mais o sistema imune e, dessa forma, reduzir a quantidade de antígeno (proteína) nas doses. Esses testes irão determinar em que condições se darão os ensaios de neutralização de maneira mais eficiente”, informa a superintendência de comunicação da UFPR.
Só depois de completar toda essa etapa na bancada do laboratório é que o candidato a imunizante poderá ser testado em seres humanos (desde que tenha a aprovação da Anvisa para os estudos de fase 1, 2 e 3).
“Com a conclusão destes ensaios, será possível solicitar à Anvisa a autorização para testes em humanos. A previsão é que isso ocorra no final do primeiro semestre de 2022”, conclui a universidade, em nota enviada à BBC News Brasil.
Fonte: BBC Brasil